Em "O Cortiço", de Aluísio Azevedo, o leitor tem a sensação de ser mais um morador daquele lugar, onde, vez ou outra, "um cheiro bom de refogados de carne fresca" toma conta do ambiente. Stephen King, em "O Iluminado", conseguiu criar uma atmosfera de suspense e medo ao descrever as visões do garoto Danny, que iam desde paredes ensanguentadas a encontros com pessoas mortas no corredor do Hotel Overlook.
O que estas duas obras têm em comum" Ambas fazem bom uso da ambientação, ao explorar cheiros, sons, cores, iluminação, aspectos sociais, entre outros recursos, para provocar o imaginário e os sentidos de quem lê. É, também, por meio dela que o leitor "entra" na história
No livro "Escreva! Guia de Escrita Criativa", Pedro Gonzaga e Jane Tutikian definem ambientação como "o pano de fundo em que se desenrolarão as ações, por onde circularão as personagens". Ou seja, é o lugar onde as cenas ocorrem, que pode ser o pátio da escola, uma cidade do interior ou mesmo um planeta futurístico. Em textos mais intimistas, a ambientação costuma se basear em um fluxo de pensamentos e emoções, mais do que num lugar.
Ainda que esteja intimamente ligada ao espaço, um dos cincos elementos fundamentais da narrativa, falar sobre ambientação requer ir além da simples descrição da estrutura física e da localização geográfica. Os ambientes não são estáticos, há sempre algo acontecendo em volta: um acidente na esquina, uma borboleta que pousa na janela, uma criança que chora, um copo que quebra. Claro que o nível de percepção desse ambiente vai depender da escolha do narrador.
O fato é que tais acontecimentos podem interferir no psicológico dos personagens, influenciando sentimentos, humor e emoções. Portanto, em vez de apenas descrever uma casa com janelas, portas e telhado, o escritor pode explorar aspectos sensoriais, como um cheiro vindo da cozinha, que evoca uma memória de infância, uma decoração grotesca que inspira medo, ou um jardim que lembre o trauma de estar perdido na floresta.
Repare, nos dois trechos abaixo, como Aluísio Azevedo descreve um típico iniciar do dia, em "O Cortiço":
"Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas".
"(...) das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros (...)"
Lembre-se, criar a ambientação é muito mais que enumerar características, por isso separamos algumas dicas para você aprimorar esse componente em suas histórias.
Lugares reais como inspiração
A observação e a memória são grandes aliadas na criação de cenários fictícios. Uma praça, outrora frequentada na adolescência, pode servir de inspiração para o lugar onde dois personagens se conheceram e se apaixonaram, por exemplo. E, com a ajuda da imaginação, essa mesma praça pode ganhar nuances que não existiam na realidade. Para se ter uma ideia, Stephen King se inspirou em um hotel real para criar o Overlook, onde a trama de "O Iluminado" se desenvolve.
Figuras de linguagem
Utilize figuras de linguagem, como metáforas, metonímias, sinestesias etc. Isso evitará uma descrição meramente literal e enriquecerá a narrativa, pois assim o leitor terá mais elementos para assimilar em seu imaginário.
Linha do tempo
Em qual época a narrativa se desenvolve" O desafio, nesse caso, é fazer o leitor viajar no tempo, para o passado ou futuro, o que importa é que ele se sinta dentro do universo ficcional. Mas, cuidado! Não perca de vista a verossimilhança. A história se passa em um vilarejo na Idade Média" Então, não há como inserir o barulho de carros na ambientação.
Clima
Imagine a cena: a personagem rompeu com seu par amoroso e decidiu se trancar no quarto para chorar. Ela, então, olha através da janela e se deixa levar pelos pensamentos de dor e tristeza. Como você imagina que esteja o tempo lá fora" É dia ou noite" Chove ou há poucas nuvens no céu" Bem, não existe uma resposta certa, tudo depende da ambientação que o escritor deseja transmitir ao leitor. Mas pode ser que um dia cinza ou chuvoso dessem mais peso à melancolia da personagem, fica aqui uma provocação.
Um lugar, um sentimento
Um espaço físico pode ter um valor sentimental. Assim, um determinado personagem dirá sobre a casa onde cresceu: "ali era meu porto seguro", ou ainda "a cozinha era o coração das reuniões familiares". Em "O Iluminado", o problemático Jack fala para o filho: "o mundo é um lugar duro, Danny. Não se importa com a gente". As figuras de linguagem são muito bem-vindas nesse caso.
Personagens
Sim, a maneira como os personagens se portam e interagem uns com os outros também pode ajudar na ambientação. Em contos de terror, por exemplo, comportamentos estranhos, hábitos de higiene questionáveis e olhares dúbios vão formar, na mente do leitor, toda uma atmosfera de tensão. De que forma os personagens preenchem os espaços da narrativa" Como se comportam dentro deles" Uma dica é investir na descrição de gestos, microexpressões, tons de vozes, hálitos, perfumes etc.
